Diz-se do tráfico de crack que é desorganizado e amador. Não bastasse, afirma-se a torto e direito que é comandado pelo mais frágil dos criminosos – o misto de consumidor com traficante –, um sujeito fadado à morte certa num mundo onde os fracos não têm vez. Em outras palavras, o comércio de pedras funcionaria como uma quitanda de vila. Desmantelá-lo seria a mais fácil das tarefas. Mas não é o que acontece.
Durante três semanas, a reportagem da Gazeta do Povo perguntou a 25 personalidades ligadas ao combate e prevenção às drogas por que o comércio de crack não é reprimido, já que, em tese, funciona de forma doméstica. As respostas revelaram o que mais se temia: não há um consenso sobre o assunto. Com a velocidade com que as pedras rolam, sumiram todas as certezas. Um dos raros pontos em comum é a afirmação de que o Paraná é um corredor por onde passam as drogas que abastecem São Paulo. O fato justifica o estado ter perdido apenas para São Paulo em quilos de crack apreendido, ano passado, de acordo com dados da Polícia Federal: o ranking foi 97 para o Paraná contra 215 para São Paulo.
Controvérsia
A reportagem da Gazeta do Povo perguntou a especialistas: o crack é responsável pelo aumento de violência?
Sim
Fernando Francischini, secretário Antidrogas
Francischini diz que sexta-feira e sábado, das 19 às 22 horas, são considerados os dias de mais incidência de tráfico.
O horário coincide com o maior número de homicídios.
A resposta é sim.
José Antônio Schardong, técnico do CTDia
Schardong defende que a violência acaba sendo um comportamento associado ao crack. “É o abrigo do comportamento ilegal. Além do mais, o usuário acaba roubando seus familiares.”
Nasser Salmen, delegado licenciado
Salmen acha que o crack tem responsabilidade no avanço do crime. “Objetos roubados podem ser encontrados nas bocas-de-fumo. A Secretaria de Estado de Segurança Pública sabe onde elas ficam. E os Centros Integrados de Atendimento ao Cidadão (Ciacs), das delegacias, registram os casos de violência gerados pela droga.
Gil Rocha Tesserolli, delegado da Polícia civil
Tesserolli destaca que o usuário de crack faz de tudo para conseguir a pedra – principalmente crimes contra o patrimônio. “A porcentagem de casos é grande.”
Luiz Renato Carazzai, psiquiatra do Hospital de Clínicas
Carazzai destaca que o consumo de crack sempre é grave, aumentou, e traz junto a violência. “A sociedade está paralisada e assustada com a ligação entre essas duas realidades.”
Não
Araci Asinelli da Luz, pesquisadora de drogadição na UFPR
Araci entende que a favela e o crack são usados como bode expiatório para explicar a violência. “Trata-se de uma mudança de foco para tirar a culpa da elite.” Para Araci, a culpabilização dos usuários faz parte do esquema que primeiro exclui, depois confina e por fim elimina o usuário.
Dalton Gean Perovano, do Proerd
O tenente Perovano também acha que a droga virou a desculpa para a violência. “A relação entre crime e drogadição é típica de algumas comunidades. Não é geral. A violência está ligada à baixa geração de renda.”
Talvez
Dagoberto Requião, diretor-geral do Hospital Nossa Senhora da Luz
Para o psiquiatra Dagoberto Requião, a falta de dados confirmando a relação entre violência e drogadição é uma agonia. “A ausência de informação me faz lembrar os momentos mais sombrios da História do Brasil.”
Diagnóstico
Os dados apurados nesta série de reportagens sobre o aumento do consumo do crack, que iniciou ontem e encerra amanhã, apontam para as seguintes conclusões:
1 Escalada – Nos últimos cinco anos, o consumo de crack cresceu entre os jovens da classe média. Em 2007, cerca de 2 mil usuários de crack procuraram tratamento em clínicas e hospitais particulares, cujas diárias beiram R$ 300.
2 Distorções – O mundo do crack é cercado de falsas crenças. A primeira delas é de que se trata de uma droga barata. No auge do consumo um usuário chega a queimar 20 pedras por dia, o equivalente a R$ 200. É o mesmo preço de 10 gramas de cocaína – quantidade que tende a ser consumida durante dois dias. Outra distorção é que se trata de uma droga dos miseráveis, pois atinge a camada média baixa e média alta da população, sem distinção.
3 Prejuízos – O uso do crack varia entre 0,7% e 1,1% da população. Mas seus prejuizos sociais são enormes: causa dependência em 30 dias, sendo que os índices de recuperação são de 5% – segundo a Organização Mundial da Saúde – e de 30%, de acordo com os profissionais ouvidos pela reportagem. Por tabela, o crack está associado à violência.
O outro consenso é de que o crack faz parte do mesmo esquema que transporta a cocaína, a maconha e o ecstasy, botando por terra a tese de que as pedras circulam em bocas-de-fumo comandadas por mafiosos de quinta categoria. Por fim, admite-se que os números sobre consumo de crack são um engano, porque não consideram uma nova faceta do setor – o consumo combinado. Com o rareamento da cocaína, muitos usuários migram para o crack, o que é uma fatalidade. Somando os índices dos dois entorpecentes, divulgados pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), apenas no Sul 4,4% da população seria usuária de pedra, o equivalente a 500 mil pessoas apenas no Paraná. Mas o dado carece de aferição.
“Estamos na rota. Temos de conviver com seis mil hectares de maconha plantadas no Paraguai. O grosso do que passa por aqui não fica no Paraná, mas sabe-se que a droga se espalha pelos locais por onde circula”, comenta uma das autoridades no assunto, o tenente-coronel Jorge Costa Filho, criador e coordenador do 181 – serviço de Narcodenúncia. De acordo com o delegado da Polícia Federal e secretário especial Antidrogas do município de Curitiba, Fernando Francischini, 50% da droga traficada fica nas regiões por onde é transportada. “Essa história começa no Lago de Itaipu. Ali tem tráfico a noite inteira. Os lotes vão ficando pelo caminho”, diz o secretário pondo a mão no vespeiro.
As táticas de combate ao tráfico são controversas. A opção das forças policiais por combater o grande traficante acabaria por perder de vista a ação dos varejistas – justo os que mais perpetuam o comércio de crack, mesmo sendo usuários. “Não dá para chamar de tráfico o que acontece na Praça do Gaúcho”, defende o tenente-coronel Costa.
É uma conversa afiada, que mexe com os brios de quem trabalha na prevenção e no tratamento de dependentes, a exemplo do frei Francisco Manoel de Oliveira, 56 anos, criador e coordenador da Casa do Servo Sofredor, no Pinheirinho, zona sul da capital, onde são atendidos 60 usuários – a maioria de crack. “Curitiba fez opção pela repressão ao usuário e não ao traficante. A polícia sabe onde estão as bocas. Desafio quem quiser. O mundo do crack é organizado. Confusos estamos nós”, provoca.
A opinião de que existe vida inteligente rolando pedras na vizinhança – e não um bando de maltrapilhos – é, em parte, partilhada pelo delegado licenciado Nasser Salmen, 44, ex-usuário e hoje consultor de empresas para assuntos de drogadição. “O sistema não é aritmético. É geométrico, multiplica-se. Os pontos de venda proliferam, gerando novos ‘vapores’, novas ‘mulas’. É uma desordem inteligente”, resume.
Gil Rocha Tesserolli, 42 anos, delegado titular do Núcleo de Repressão ao Tráfico de Drogas de Curitiba, reconhece que é preciso combater o pequeno traficante-usuário. Em defesa da Polícia Civil, garante que não passa um dia sem que se apreendam pelo menos 15 pedras. Ou que ele mesmo não atenda pelo menos um usuário em vias de desespero. Tesserolli cita um caso que o chocou, o de um carrinheiro que dava ao “patrão” os R$ 15 a R$ 30 que ganhava por dia em troca de pedra. “Por trás da informalidade estão pequenas organizações, que se renovam de tempos em tempos”, diz o policial que acompanha o tráfico na região metropolitana, área que concentra 60% das denúncias de narcotráfico do estado.
A prioridade, contudo, permanece sendo a grande apreensão e o grande traficante, no melhor do estilo “o mal pela raiz”. A operação mais modesta, conta Gil, pegou 500 gramas de pasta-base de crack. “Tem de multiplicar qualquer número desses por quatro. Processada, a quantia daria dois quilos, duas mil pedras”, conta. Só nos primeiros dois meses do ano, a regional em que o delegado trabalha captou 23 mil pedras. No Paraná todo foram 342 mil, 40% apenas na região do Foz do Iguaçu.
Muita coisa? Barato, fácil de carregar e de despistar – basta um traficante alegar que as três ou quatro pedras que carrega são para consumo próprio –, o crack virou um negócio da China. Com a repressão maciça à cocaína e à maconha, tornou-se uma alternativa para os usuários, apesar do custo social que representa. Além do vício demolidor, paga-se por cada pedra o preço da violência. “Os usuários do crack vão se matando entre si. Não há nenhuma possibilidade de comunidade nesse mundo”, reforça o secretário Francischini. “O crack roubou o caráter social da maconha e ocupou o lugar de outras drogas. É um comércio lucrativo, no qual 78% dos dependentes são jovens de 14 a 18 anos, com energia para lutar pelo vício”, comenta Nasser Salmen, sobre o maior dos argumentos. É preciso impedir a moçada de chegar à primeira pedra.
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
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